AS PESSOAS MATAM
Eu
tinha 23 anos quando pela primeira vez me dei conta que o ser humano tem a
capacidade de matar outra pessoa. Eu era na época estagiaria de psicologia numa
das maiores penitenciarias do Estado.
E
ali me sentei para ouvir aquela pessoa privada da liberdade. Eu com meus ideais
firmes e fortes da psicologia de ajudar ao outro. E aquele estranho homem botou-se
a falar de si, do que o trazia ali, do que o mantinha por muitos anos preso.
Ele um agricultor, um homem que adorava plantar, acordava cedo, saia para a
lida do campo. Até que um dia seu vizinho, por questões de limite das terras
chegaram as vias de fato. Ele puxou do facão e não mais ficou quieto para os
desmandos do vizinho, que tinha colocado a cerca em suas terras, o impedindo de
fazer uso da agua que ali, exatamente naquele pedaço de terra, e que lhe
pertencia. A raiva era muita, já tinha
tentado conversar, já registrara ocorrência policial, mais de dez vezes, e nada
tinha sido feito. Aquele dia sonhou com seu avô, um homem brabo, forte, que não
levava desaforo para casa. Acordou pegou seu facão e foi para o campo.
Agora
passados dez anos, chora muito ainda, cotidianamente e pede perdão a Deus, por
ter tirado a vida de seu vizinho. Como pude, se pergunta? Como pude tirar a
vida de um pai de família, a que ponto cheguei. Podia ter me mudado, vendido
aquela terra. Minha família ficou lá sem assistência, não convivo com meus
filhos, a família dele também ficou desamparada. E o pior a situação não se
resolveu, hoje nossos filhos se odeiam e o conflito com os limites da terra
perduraram.
Cheguei
em casa destruída, chorava muito, e jurava nunca mais voltar para o estágio.
Não conseguia aceitar que um ser humano pudesse matar o outro. Mesmo que hoje
arrepende-se do feito. Corri para meu
analista, para supervisão.
Naquele
ano e nos outros vinte e nove que se seguiram, não só os homicídios, como
muitos outros atos de crueldade povoaram minha escuta. Alguns diferentes desse
não se arrependeram, fariam tudo de novo, hoje com mais requintes de crueldade.
Muitos, mas muitos sim, refletiam, falavam sobre, achavam novas possibilidades
de viver, de forma diferente daquela em que tornaram ato seus piores
sentimentos. E pena que a sociedade ainda hoje pense que a prisão é solução
para esses conflitos que resultam em morte, dano.
Aprendi
que o crime, é um ato humano, eminentemente humano. Que os animais, os leões,
os tigres, e outros matam para a sobrevivência. O animal racional, humano, mata
por prazer.
Porto Alegre, 03 maio 2016
Magaly Andriotti Fernandes
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