segunda-feira, 15 de outubro de 2018


O  Porteiro 


                                           

                                                        Magaly  Andriotti Fernandes


Ele chega pontualmente às 5h55min. Fala alto, não se apercebe que sua voz pode acordar os condôminos, logo ele tão cuidadoso. Fala grosso e o som se propaga. Fica ali sentado, atende ao interfone, abre e fecha o portão dos carros e a porta dos pedestres. Não é de muita fala, bom observador, conhece a vida de todos. Só reproduz, uma história, um fato, se alguém lhe interroga. Por si só, não relata e não inventa nada, não gosta de fofocas. Preciso.  Observa todos como uma águia. Seus olhos escondem-se por trás de um grande bigode, bigode denso e escuro, olhos de bom observador. Foi contratado nos primeiros dias após a inauguração da construção. Já há muito tempo poderia ter se aposentado. Chegou aqui com outros dez anos de portaria. O prédio onde trabalhava anteriormente era bem pequeno, não gostava de lá e o salário era bem menor. Nesse, são 480 apartamentos, duas portarias. Ele fica sempre na mesma, argumenta que assim é melhor para segurança. Não aceita trocar. Trabalha no turno da manhã, e raramente cobre a folga de algum colega. Não gosta de falar de si. Faltar ao trabalho, inverno e verão, não importa, segue seu cotidiano. Faltou só quando a mãe faleceu. Tem que sair de casa as 4 horas da madrugada para chegar no horário. Não suporta pensar em chegar atrasado. É um homem de mais de sessenta anos, saudável, forte, peso adequado ao seu biótipo, calvo.
            Desde o início de agosto anda cabisbaixo, pensativo: -  quarenta anos, quarenta anos e todos os dias a mesma rotina. Acorda, faz sua higiene, toma uma xicara de café preto, reflete, não suporta leite, ovos mexidos, hoje, não vai comer. Alimenta seu canário, ele é tudo o que tem de bom e perfeito, o deixa na área de serviço e sai. Por vezes pensa em levá-lo consigo. Isso o distrairia, não varia bem seu trabalho e por isso o deixa, ali solitário. O ônibus fica há três quadras. O motorista e o cobrador, já conheceu muitos. Até a linha do ônibus não é mais a mesma. Agora ele, ele não, sempre fazendo aquele mesmo percurso, indo para o mesmo destino. Outro dia aquela vizinha, a primeira a ocupar o apartamento do bloco Y, no décimo andar, lhe perguntou: - tu quem és?  Quando trocaram o porteiro e eu nem sabia? Imagina, sempre a cumprimentou. Quantas vez já interfonou avisando que chegara alguma encomenda, ela mesmo recebeu de suas mãos, fazia algum comentário sobre política. Ele que se preocupava em não deixar nenhum estranho entrar. Em zelar pela segurança de todos.  O que essas pessoas pensavam sobre ele? E aquela menina desaforada do bloco G, que chegava gritando, dizendo palavrões, ele aceitava quieto, calado, não fez nunca queixa aos país.
            O que fez de sua vida! Não casou, cuidou da mãe até três anos passados, quando um câncer a levou. Esse mês completa aniversário de falecimento. Os irmãos nunca cuidaram dela, e não lhe agradeceram por ter dedicado seus dias a cuidá-la.    Chega em casa, faz o almoço, lava roupa e vai ler. Não gosta de televisão, gosta sim de uma boa série policial. Isso também lhe incomoda muito.  Essa semana mesmo, terminou sua serie preferida, Luther.  Isso não é correto, esses diretores deveriam fazer séries que não tivessem fim. Não é certo deixar o espectador assim desamparado.
            A manhã ali naquele prédio é relativamente tranquila. As pessoas, em sua maioria saem para o trabalho. Essa semana tinha o velório do senhor do bloco H. Um homem de setenta anos, bom papo, um enfarto e pronto. Observa que agora residem mais idosos, o número de pessoas ficando pelos bancos a tomar chimarrão é significativo. E ele, quando irá poder ficar assim parado, vendo a vida passar. Bobagem a sua, já tem feito isso. O que é ser porteiro? O que fez para mudar o mundo? Os moradores nem percebem quando ele está mais triste, ou mais alegre.  Também sempre cuidou para não mudar seu comportamento, solicito, gentil, aplicado, escrupuloso e prestativo. Tem aqueles mal-educados, e ele ali firme, correto.
            Naquela segunda feira, um tal fala-fala, onde estaria o porteiro? Não telefonou avisando que não viria, na terça e na quarta a mesma coisa. O sindico achou melhor pedir ao zelador para ir visitá-lo e saber o que estava acontecendo. No apartamento, um cheiro estranho, escuta-se o canário cantando intensamente. Toca a campainha e nada. Pergunta aos vizinhos e ninguém sabe dele. Não tem familiares na cidade. Liga para o irmão, único telefone que registrado em sua ficha funcional. Nada sabe, autoriza ligar para os bombeiros e abrirem a porta. Lá está ele, corpo inerte, azulado, com o uniforme, pendurado em uma corda.

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