quarta-feira, 10 de junho de 2020


                                       
                                              COVID19 E O ENCONTRO

                                                                                           MAGALY ANDRIOTTI FERNANDES


Ela acordou, colocou o abrigo e saiu á caminhar. Foi para o lado do rio, precisava de ar fresco. O dia nublado, friozinho, colocou toca, echarpe e máscara. Ia pegar uma maça, mas viu que não tinha como comer usando máscara. Saiu. Sabia que se pensasse mais um pouco não sairia. A Pandemia, o inverno que já se fazia presente. Respirou fundo e ganhou rua. O porteiro a cumprimentou, e fez uma cara de quem não está entendendo nada. Imaginou que ele deve ter pensado:— essa ai é doida.
                Adorou o ventinho que lhe batia no rosto. E a máscara, uma boa, respirava seu próprio ar quentinho. Acelerou o passo, dobrou a esquina e foi.  Uma chuva bem fininha iniciou. Pensou, não vou voltar. E seguiu. Na rua um carro que outro, o pessoal da feira iniciando montar as barracas.  Achou melhor atravessar no sinal. Quando entrou na Pereira Neto em direção ao rio, ficou com um pouco de medo. Não se via viva alma.  Ouvia seus passos na rua deserta. Chegando na praça, resolveu sentar e desfrutar da solidão. Aquela praça lhe era muito familiar. Setenta e cinco dias sem sair assim sem rumo, seu destino como um ratinho de pesquisa era apenas o supermercado, não aguentava mais. Precisava de liberdade, voar, rever ruas, árvores, movimentar-se. Estava tão ensimesmada que não percebeu um homem aproximar-se.  Ele tomava seu chimarrão bem tranquilo. 
— Posso sentar aqui?
— Tranquilo, a praça é pública.
— Digo do teu lado.
— Sem problema.
— Não tem medo que te contamine?  Não estou usando máscara.
Ele, um homem alto, espadaúdo, barba grisalha, cabelos acima dos ombros, olhos verdes, e um sorriso acolhedor.
Ela tremeu nas bases.
— Vamos sentar cada um na ponta do banco, pode ser?
— Então tem medo?
— Prevenção, nunca é demais.
— Eu venho sempre aqui, nunca te vi.
— Eu, há muito não frequento essa praça. Quando meus filhos eram bebes, vinha seguido, depois quando eles estudavam aqui perto, também. E agora que sou vó, as vezes trago meu neto e netas aqui.
— Netos é? Eu sou solteiro, um solitário. Morro aqui perto, caminho quase todos os dias. Aqui é muito vazio, encontramos poucas pessoas.
— Pensei nisso quando resolvi caminhar aqui e não na frente do Shopping.  Fiquei com um pouco de receio. Medo de assalto. Pensei, domingo pela manhã, os assaltantes devem estar dormindo.
— Ele riu, e não tem medo dos tarados? De mim por exemplo, e deu outra risada.
Ela olhou bem para ele, é de fato, um homem forte, charmoso. E se ele resolvesse ataca-la. O que fazer. Bem pensou, um homem desses era tudo o que eu estava buscando. Acho que ele não vai precisar me forçar a nada que eu não queira. 
— É. Você um tipo fortão... bonitão...de chimarrão em punho…penso que podemos negociar...se for o caso. E deu um sorriso.
— Vamos caminhar, ele falou.
E os dois seguiram o percurso até o rio, lá sentaram novamente e ficaram olhando calados os movimentos da água marrom do Guaíba, e dos pássaros que voavam daqui para lá. Ele lhe ofereceu o mate. E assim passou boa parte da manhã.
— Almoça comigo? Sou um bom assador.
Porto Alegre 07/06/2010

–DESAPARECIMENTO

II


            — Oi, tu falou com a mãe hoje? Tenho ligado, mandei mensagem e ela não responde.
            — Tentaste o fone fixo?
            — Nem sabia que ainda existia.
            — Espera vou tentar. É ela não está atendendo.  Deve estar gravado uma live. Ou vendo filme, ai não atende mesmo. Fico tranquilo, mais tarde eu tendo novamente.
            No outro dia o filho recebeu o telefonema do melhor amigo.
            — Tens falado com a tua mãe? Desde domingo que ligo e nada.  Conversávamos todos os dias, ou ao meio dia ou no final da tarde. Estou preocupado, ela sempre diz quanto vai fazer meditação, que não quer que ligue, que fale com ela. Não dize nada.
            — José, vou até lá hoje, combinei de almoçar com ela. Peço para te ligar.
            Ficou preocupado, e resolveu ir na mãe antes da reunião. Tocou a campainha e nada. Abriu a porta, ainda bem que tinha cópia da chave. Entrou já falando, mãe, oh mãe….
            Ligou para o irmão.
            —Olha estou aqui na mãe e ela não está em casa. Nenhum bilhete, ela não me falou que iria sair. Sempre que sai agora na pandemia me envia mensagens.
            Interfonou para a portaria. O porteiro dize: — olha a vi no domingo bem cedo. Saiu para caminhar toda abrigada. Achei estranho. Não vi quando retornou. Domingo aqui é muito agitado, tu sabes, tem a feira. Observei que as janelas estavam sempre abertas Ultimamente os moradores tem comportamentos estranhos.
            —Obrigado Sr. João. Vou ver se a localizo.
            O irmão, que continuava aguardando na ligação falou — vamos ter que ligar para hospitais, DML, se saiu para caminhar, pode ter sido atropelada, deve ter ido sem documentos.
            Cristiano ligou para a amiga da mãe que morava fora da cidade, perguntando se ela havia se comunicado. Foi até o andar de baixo, onde residia outra amiga, também não estava.  Poderia ter tido onde iria. A mãe tinha dessas, era muito autônoma. E as vezes resolvia não dar satisfação para ninguém. E como ela dizia notícia ruim vem sozinha.  A amiga não sabia de nada e ficou bastante preocupada. Falou que ia ligar para ela. Ele explicou que não adiantava, o fone estava em casa e sem bateria.
            Ele achou melhor ir direto ao pronto socorro, e ao DML. Ligou para secretaria e pediu que desmarcasse a reunião. Nada nem sinal da mãe. Resolveu ir na polícia e registrar o desaparecimento. 
            — Que idade ela tem?
—60 anos, aposentada, estatura baixa, cabelos avermelhados, gordinha
—Tu já ligou para os amigos dela?
—O melhor amigo que me falou que ela não estava respondendo aos telefonemas dele.  Ficou pensando que não ligava todos os dias para sua mãe.  Cada um vivia sua vida independente.  Viam-se com frequência. Vou ligar para meu filho, ver se ela dize algo.
—Oi a vó ligou para ti? Te falou se ia viajar? Ir na casa de alguma amiga?
— Não pai, falamos no sábado. Aconteceu alguma coisa?
— Vim aqui na casa dela, e não a encontro. Mas logo deve retornar.
— Foste no pronto socorro, DML, hospitais? O policial impaciente fala.
— Pronto Socorro sim, DML sim e graças a Deus não estava lá. O porteiro do prédio foi o último a vê-la dize que cedo, tipo sete horas da manhã saiu para caminhar. Estava toda abrigada. Ele achou estranho, pois com a Pandemia ela não estava saindo de casa, só para o mercado. E que não a viu retornar. Observou que as janelas do apartamento estavam ficando abertas, mas que agora nesses tempos de isolamento os vizinhos tinham comportamentos alterados.
— Te aconselho a procurar outros hospitais, aqui somos poucos, vamos fazer algumas tentativas.
Os dias se passaram, ele foi a todos os hospitais da cidade, o irmão que morava em outra cidade veio para ajudá-lo. Os amigos iniciaram a ligar para todos que a conheciam e nenhuma pista.
—Ligaram para o pai, que residia em outro Estado, ele também há muito não falava com ela. Perguntou se ligaram para os ex-namorados dela. Não tinham o telefone. O filho lembrou que o fone dela estava em casa.  Ligaram para o Tomas, ele ficou surpreso e nervoso, não namoravam mais, mas seguido batiam papo. Nessa pandemia não haviam conversado. Mas ele concluiu: — tua mãe deve ter ido se encontrar com alguém. Ela não é pessoa de ficar sozinha. E deve ter esquecido da vida familiar.
O Ernesto: — Eu sempre orientei que tomasse cuidado. Ela é muito intempestiva, sair nessa pandemia caminhar domingo cedo. Vai ver alguém a sequestrou. E ainda mais ela que tem tantos inimigos.
— Inimigos, perguntou o filho? Como assim.
—Uma pessoa que trabalhou na prisão, o que tu achas? Só pode ter inimigos.
O filho logo viu que eram coisas do Ernesto. Sua mãe não tinha inimigo algum, pelo contrário era pessoa de muitos amigos. E no trabalho particularmente, tanto dos colegas como entre os que eram pacientes.
Os dias iam passado e nada de informação. O irmão mais velho retornou para casa, ele seguiu o trabalho, e a polícia não achou nenhuma pista.
No jornal de maior circulação na cidade, meia página com a foto e falando do desaparecimento.
Os filhos colocaram no facebook, instagram e outros a foto dela falando do desaparecimento.


                  O RETORNO
III


            Chegando na casa de Syrlon.
            — Espera aqui, vou ver uma roupa para ti, pode ser. Andamos na rua, sentamos, essas roupas podem estar contaminadas.
            Ela acenou com a cabeça
            — Espero que sirvam, olha  aqui no lavabo, deixo as roupas da rua.
            Trocou-se, e quando entrou ele já estava junto a lareira iniciando o fogo.
            — Fica à vontade, queres me ajudar?
— O que precisas?
Foram para a cozinha ele pediu para fazer a salada, enquanto preparava a carne para assar.
—Não te decepcionas, vou fazer o churrasco no forno.
—Com esse frio, melhor assim.
—Toma vinho? Ou queres uma caipirinha?
—Vinho
Syrlon colocou Zeca Baleiro. Dafne ficou feliz, amava Lenha e quase todas as músicas dele. Adora essa ,era uma provocação.
Lavou as alfaces, as rúculas, as radides, cortou os tomates, escaldou as cebolas.
—Não prefere que eu coloque as cebolas no forno?
—Adoro.
—Coloca palmito, pode ser?
Dafne sentiu um arrepio. Pensou que ele era perfeito. Até palmito ele gostava. Perfeito demais. Não podia beber e perder os sentidos. Era muito doida. Estava ali na casa daquele homem espadaúdo, forte e não avisou ninguém que ia sair para caminhar.
 Entre morrer atacada pelo covit19 fez a opção que seria melhor aquele ataque. Um homem que parecia um urso. E que perfume, amadeirado... e que voz, rouca.
Devo estar no nirvana. E deixou correr.
Foram para a sala ele queria lhe mostrar uma poesia da Adélia Prado. E ai sim ela pensou isso não deve estar certo, alguém está me pregando uma peça.  Deve ter entrado num portal. “Casamento” , sua poesia preferida. Beijaram-se.... e ali ficaram....quietos...ouvindo a música. O cheiro da carne os tirou daquela letargia.
E assim ficaram os dois, entre uma refeição e outra. Pela manhã saiam para caminhar, passavam os dias a ler, conversar, ouvindo música...
Foi procurar no facebook   a foto de Spello, quando encontrou sua foto, e a informação que estava desaparecida. Um balde de água fria, e um retorno rápido a realidade. — Syrlon, olha isso? Não liguei para os filhos, pensam que estou desaparecida.
Os dois riram, se beijaram e ela fez ligação para os filhos. Só sabia de memória o do caçula que era muito parecido com o seu.
— Genaro,
— Mãe, onde tu estás?
—Genaro, mil desculpas, estou na casa de um amigo. Perdi o tempo. Estou bem. Tu podes me dar o fone do teu irmão que eu ligo avisando.
—Mãe liga para a polícia, e diz que tu apareceu. Tomas é a pessoa que mais te conhece mãe. Ele me falou que tu devias estar na casa de alguém.
—Ligo sim.   Tomas tem uma alma muito parecida com a minha.
—Genaro, não vou voltar agora. Salva esse fone, é do Syrlon, se precisares falar comigo. Beijo, te amo.


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