Infância enclausurada
Escrevendo
e relembrando sobre as ruas da minha infância, num bairro da capital de Estado
do RS, dei-me conta de como era livre, e como as ruas podiam ser trilhadas e
desvendadas pelas crianças. As ruas eram territórios que pertenciam as
crianças. Corríamos, jogávamos, subíamos em arvores. Organizávamos festas
juninas, natalinas, era um espaço de puro convívio.
O
jogo de taco, curtido, um grupo de cada lado, as correrias, as gritarias, numa
competição eterna entre moradores de ruas diversas. O jogo de bolitas e suas
disputas. O jogo de amarelinha, o pular corta, o caçador, e as cantigas de roda
que a todos encantavam. Até futebol eu jogava. As coleções de carteiras de
cigarro, que guardávamos em caixas de sapatos vazias e fazíamos trocas. Eu
tinha uma bem cuidada e bem completa. Brincadeiras que eram partilhadas por
meninos e meninas. Ir para casa, só ao entardecer, para tomar banho, fazer os
temas, alimentar-se e dormir.
As
árvores eram muitas e ficar sobre elas, fazer com taquaras, canudinhos para
sobrar sementes uns nos outros, verdadeiras guerras vivíamos. Ficamos horas ali
brincando num mundo totalmente imaginário. As raízes das arvores,
particularmente das Paineiras, minhas preferidas, limpar e brincar de casinha,
fazer comidinhas. Sozinha ou com amigas, eu as vezes esquecia da hora, minha
mãe tinha que vir buscar-me.
Roubar
frutas no quintal dos vizinhos, que cultivavam uvas e bergamotas. Humm... ainda
tenho em mim o gosto das jabuticabas. Eu como era a menor do grupo, subia nas
árvores para apanhar as frutas. E quando alguém aparecia, quem era pega? Eu
mesma, e lá me levavam para minha mãe de mãos dadas. A surra e o castigo era
uma dupla certa, e que não me impedia de noutra semana repetir tudo novamente.
Ir
no armazém, buscar doce de leite a granel, buscar o pão francês de meio quilo
para o café da tarde.
As
noites fazíamos rodas no pátio de algum dos amigos e ficávamos ali a contar e a
ouvir histórias de lobisomens, bruxas e outros contos terríficos. Quando era lá
casa, meu avô materno, tinha historias onde sempre conhecia os personagens,
tornando tudo mais assustador. O problema depois era dormir, pegar no sonho,
com as lembranças do que ouvimos.
A
televisão foi surgir na minha casa já quando eu estava entrando na puberdade, e
mesmo assim os horários para as crianças eram delimitados. Eram poucos os
programas para minha faixa etária. Eu nunca deixava a rua pela televisão.
Hoje
não, vejo meus netos, que não saem na rua sozinhos. Uma criança não anda mais
na rua sozinha, não vai no mercado, não vai para a escola. Caso brinque na rua,
e no pátio, das poucas casas que ainda tem esse espaço, e de alguns edifícios
que constroem playgrounds sempre tem a supervisão de algum adulto, e
normalmente são espaços restritos. As criança, ficam enclausuradas em seus
quartos e casas. Vivem um mundo virtual. Seus jogos são eletrônicos. A
televisão passou a ser vista cotidianamente.
Existem muitos filmes e desenhos para todas as faixas etárias. Algumas
famílias fazem da televisão uma baba eletrônica.
Nas
escolas encontramos muitas crianças obesas, hipertensas que eram doenças
típicas de adultos mais para idosos. As
criança de hoje, recebem prescrição médica para natação e outras atividades
físicas. Algumas que se recusam a ficar escravas dos brinquedos eletrônicas,
são tachadas de hiperativas. As ruas são
vistas como perigosas. A raro ver uma criança que saiba subir em arvore, que
saiba soltar uma pandorga, que saiba jogos de rua, que brinque de correr, de esconde
–esconde.
O
mundo virtual tem muitas vantagens, a criança tem acesso a informações que não
tínhamos na minha infância. A criança consegue viajar pelo mundo, ver animais,
plantas, escutar seus sons, já não são tão crédula como éramos.
A
mim fica essa interrogação não estamos restringindo demais o corpo infantil,
seus movimentos, sua inserção no espaço público? Como se dá aprendizagem quando
não há uma integração entre corpo e mente?
Essa falta de rua, de convivência, de espaços lúdicos, vai produzir que
tipo de adultos? É justo mantermos nossas crianças enclausuradas, sem esse
contato com a natureza e com o público?
Magaly Andriotti Fernandes
Porto Alegre, 15 julho 2016
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