O barba azul – leitura provocativa
Magaly Andriotti Fernandes
Estou relendo
esse conto, essa lenda sobre o barba azul. Ele um homem forte, belo, rico, possuía
uma casa com conforto, beleza e muita riqueza. Possuía cavalos, propriedades,
tudo o que uma mulher poderia imaginar e mais um pouco. Sua barba azul fazia
com que as pessoas o estranhassem. Que pensassem que algo não estava bem. Ele
morava próximo a uma senhora viúva que dentre seus filhos tinha três mulheres. Nenhuma queria
desposa-lo pois o achavam estranho. Um dia ele resolver dar uma grande festa,
festa de uma semana inteira, convidando toda a região onde morava. A semana foi
de muita comilança, danças e alegria. A irmã menor passou a achar que a barba
azul não era assim tão estranha, e a ver atrativos naquele homem. Casou-se com
ele então. Ele saiu a viajar e lhe
entregou todas as chaves da casa e dize: “você pode se divertir a vontade, pode
convidar família e amigos. Pode abrir todas as portas, todas, menos a porta da
chave pequena”. Essa você não pode abrir nunca. E saiu a viajar. Ela logo
chamou sua família e amigos. Suas irmãs, assim como ela curiosas, abriram todas
as portas, comeram e beberam, dançaram, festejaram, e por fim abriram a porta
da chave pequena. E para horror de todas, lá dentro um ambiente obscuro,
encontravam-se ossos femininos, sangue, muito sangue. Fecharam a porta, e a
chave continuava a sangrar. Ela tentou limpar em seu vestido, que ficou tudo
sujo de sangue, colocou no bolso e ela continuou a sangrar. Limpou com cinzas,
com carvão, com barro, nada nada a fazia parar. O marido chegou para seu pavor.
E pediu pelas chaves. Ela escondeu a chave numa gaveta. O marido sentiu falta
da chave. Ela mentiu, ele achou a chave e dizer: “agora terei que matá-la como
as outras.” Ela pediu um tempo para rezar e encomendar sua alma. Ele permitiu.
Ela correu para junto das irmãs e perguntou se seus irmãos estavam vindo.
Quando eles estavam vindo retornou para perto do marido. Os irmãos chegaram e
mataram o barba azul, e o picaram, jogando-os aos corvos.
Uma
história densa, pesada, que fala das sombras da alma feminina. Fala do arquétipo
do predador que existe dentro de todas nos. Ela fala desse desejo de ter poder
e riqueza sem nada fazer além da sedução. Ela fala da forma como não aceitamos
as diferenças. Como ao diferente atribuímos o pior de nós mesmos. O que é mesmo
essa barba azul? Sinal uma diferença marcante. Na história, não está escrito o
desejo não pela pessoa, mas pela propriedade, pela riqueza do homem. Quantas mulheres,
por quantos séculos foram educadas para casar em busca de estabilidade, de poder,
de status social, de riqueza material. Por muitos anos as mulheres não podiam frequentar escolas. Eram mantidas na ignorancia.
E
essa chave, chave pequena, no meio das outras. O que a faz tão atrativa. Que
curiosidade é essa? Usei essas duas profissões pois as que estão mais no meu
cotidiano, mas pode ser qualquer uma outra. As mulheres na idade média foram
queimadas, como bruxas, porque sua curiosidade as levou a saber que os homens,
os cientistas da época não acessavam. A curiosidade, faz com que qualquer
pessoa busque. Quando essa curiosidade pode ser mortal?
Quando ela não
tem ética, como aquela de medicas, psicólogas, etc. que escutam para satisfazer
sua curiosidade, para satisfazer seu próprio ego. Descobrir implica em ter tido
a curiosidade, porem temos que suportar o peso do descoberto. A
responsabilidade sobre aquilo que descobrimos. O eu assassino do barba azul no
conto, onde está em nós? Que parte matamos em nos mesmas, que partes deixamos
lá escondidas numa pequena portinha.
Esse arquétipo
do predador, do que que destrói, do que não permite a curiosidade, do que não
permite a descoberta. Que jogo é esse de sedução que vem matando mulheres,
literalmente. Esse conto/lenda, se faz presente as vezes literalmente na vida
das pessoas, em casos de espancamentos, homens que matam mulheres. Ou se fazem
presentes, deixando mulheres embotadas, que tem medo de conhecer, de ver, de
sentir, de ir em busca. O predador dentro de nos faz pensar que somos fracas
diante da força masculina. Na história tem algo muito rico a estratégia que ela
usou para fazer frente a morte, pediu para orar e foi buscar as irmãs. O
encontro com o grupo de iguais, a força desse encontro. A presença masculina
dos irmãos, e eles que matam o monstro. Precisamos dos outros para viver, dos
homens e das mulheres.
O que será que
existem dentro de cada uma de nós, que lado sombrio é esse? O que colocamos na
portinha e fechamos? Quantos anos ainda
vamos precisar para assumir que somos capazes de construir palácios e riquezas
se é isso que queremos? Quantos anos
vamos levar para aceitar nossas riquezas pessoais? Que nossa força e diferente
da masculina sem projetar neles nossa agressividade?
E os
corvos encerram a história comendo os restos mortais do Barba Azul. A natureza
é tão sabia que sempre tem alguém para ficar com o resto.
Porto Alegre, 11 julho 207.
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