domingo, 17 de julho de 2016







Infância enclausurada


                Escrevendo e relembrando sobre as ruas da minha infância, num bairro da capital de Estado do RS, dei-me conta de como era livre, e como as ruas podiam ser trilhadas e desvendadas pelas crianças. As ruas eram territórios que pertenciam as crianças. Corríamos, jogávamos, subíamos em arvores. Organizávamos festas juninas, natalinas, era um espaço de puro convívio.
                O jogo de taco, curtido, um grupo de cada lado, as correrias, as gritarias, numa competição eterna entre moradores de ruas diversas. O jogo de bolitas e suas disputas. O jogo de amarelinha, o pular corta, o caçador, e as cantigas de roda que a todos encantavam. Até futebol eu jogava. As coleções de carteiras de cigarro, que guardávamos em caixas de sapatos vazias e fazíamos trocas. Eu tinha uma bem cuidada e bem completa. Brincadeiras que eram partilhadas por meninos e meninas. Ir para casa, só ao entardecer, para tomar banho, fazer os temas, alimentar-se e dormir.
                As árvores eram muitas e ficar sobre elas, fazer com taquaras, canudinhos para sobrar sementes uns nos outros, verdadeiras guerras vivíamos. Ficamos horas ali brincando num mundo totalmente imaginário. As raízes das arvores, particularmente das Paineiras, minhas preferidas, limpar e brincar de casinha, fazer comidinhas. Sozinha ou com amigas, eu as vezes esquecia da hora, minha mãe tinha que vir buscar-me.
                Roubar frutas no quintal dos vizinhos, que cultivavam uvas e bergamotas. Humm... ainda tenho em mim o gosto das jabuticabas. Eu como era a menor do grupo, subia nas árvores para apanhar as frutas. E quando alguém aparecia, quem era pega? Eu mesma, e lá me levavam para minha mãe de mãos dadas. A surra e o castigo era uma dupla certa, e que não me impedia de noutra semana repetir tudo novamente.
                Ir no armazém, buscar doce de leite a granel, buscar o pão francês de meio quilo para o café da tarde.              
                As noites fazíamos rodas no pátio de algum dos amigos e ficávamos ali a contar e a ouvir histórias de lobisomens, bruxas e outros contos terríficos. Quando era lá casa, meu avô materno, tinha historias onde sempre conhecia os personagens, tornando tudo mais assustador. O problema depois era dormir, pegar no sonho, com as lembranças do que ouvimos.
                A televisão foi surgir na minha casa já quando eu estava entrando na puberdade, e mesmo assim os horários para as crianças eram delimitados. Eram poucos os programas para minha faixa etária. Eu nunca deixava a rua pela televisão.
                Hoje não, vejo meus netos, que não saem na rua sozinhos. Uma criança não anda mais na rua sozinha, não vai no mercado, não vai para a escola. Caso brinque na rua, e no pátio, das poucas casas que ainda tem esse espaço, e de alguns edifícios que constroem playgrounds sempre tem a supervisão de algum adulto, e normalmente são espaços restritos. As criança, ficam enclausuradas em seus quartos e casas. Vivem um mundo virtual. Seus jogos são eletrônicos. A televisão passou a ser vista cotidianamente.  Existem muitos filmes e desenhos para todas as faixas etárias. Algumas famílias fazem da televisão uma baba eletrônica.
                Nas escolas encontramos muitas crianças obesas, hipertensas que eram doenças típicas de adultos mais para idosos.  As criança de hoje, recebem prescrição médica para natação e outras atividades físicas. Algumas que se recusam a ficar escravas dos brinquedos eletrônicas, são tachadas de hiperativas.  As ruas são vistas como perigosas. A raro ver uma criança que saiba subir em arvore, que saiba soltar uma pandorga, que saiba jogos de rua, que brinque de correr, de esconde –esconde.
                O mundo virtual tem muitas vantagens, a criança tem acesso a informações que não tínhamos na minha infância. A criança consegue viajar pelo mundo, ver animais, plantas, escutar seus sons, já não são tão crédula como éramos.
                A mim fica essa interrogação não estamos restringindo demais o corpo infantil, seus movimentos, sua inserção no espaço público? Como se dá aprendizagem quando não há uma integração entre corpo e mente?  Essa falta de rua, de convivência, de espaços lúdicos, vai produzir que tipo de adultos? É justo mantermos nossas crianças enclausuradas, sem esse contato com a natureza e com o público?

Magaly Andriotti Fernandes

Porto Alegre, 15 julho 2016

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