O reverso do amor materno
Magaly Andriotti Fernandes
A
manhã já corria solta, e ela ali, encolhida naquela cama dura, não queria abrir
os olhos. Sim, estava presa, não podia acreditar, mas ali estava entre seis
estranhas mulheres que não paravam de falar. O som a irritava mais ainda. Na
suas lembranças as palavras amargas da mãe ainda ecoavam: - “vadia, preguiçosa,
você não vai ser nada. Sai daqui, vai embora. “- “tu não serve para nada”
A
que ponto chegou sua relação com a mãe. Chora baixinho, e logo uma pessoa diz:
- não, chora não. Aqui a gente não chora. Ela não conseguia parar. Em seus pensamento,
a cena voltava e voltava. Tinha saído com o amigo do cursinho, e fora dançar,
como qualquer adolescente de sua idade.
De que adiantava ter dezenove anos senão podia se divertir. Quando chegou em casa a mãe que não tinha
tomado a medicação, passou a agredi-la verbalmente. O repertório dela era
sempre o mesmo, sempre desqualificando e colocando a para baixo. E gritando bem alto: - não te falei que não
era para sair, não te quero mais na minha casa, tu faz o que tu queres, anda
com esses caras e agora aqui na minha casa. Pode pegar as tuas coisas e ir
embora. Ela assustada, não tinha para onde ir. Tentou explicar para mãe como
estava se sentindo, que não tinha feito nada demais, só dançara, que esse amigo
estudava com ela. Tentou falar sobre seus projetos, de como vinha estudando
para o vestibular, mas a mãe não a escutava, gritava mais ainda.
Tinha
bebido um pouco, o cotidiano não era fácil, queria fazer teatro, a mãe não
deixava, queria fazer bale, não tinha recursos, queria namorar, não podia. Nem
meditar estava mais conseguindo. Desde os seis anos quando os pais separaram
sua vida virou esse inverno. O pai morava numa cidade próxima, mas pouco as
visitava. Quando estava em casa a vida era bem mais leve.
O
pai era um homem triste, mas carinhoso, atencioso. Trabalhava, não ganhava
muito. A mãe tinha o salário maior, até que sofreu um acidente de carro e teve
que aposentar-se por invalidez. Desse dia em diante a vida deles nunca mais foi
a mesma. A mãe que por muito tempo precisou usar cadeiras de rodas e
necessitava de ajuda permanente, brigava com todos, não conseguiam fixar uma
cuidadora. Além das sequelas físicas restaram as emocionais. A avó materna, que
era sua aliada faleceu. Os recursos
econômicos foram se extinguindo e restou para ela e a irmã os cuidados com a
mãe. A irmã ingressou na faculdade, e foi trabalhar, e ela que não conseguia
trabalho ficou ali subjugada pela mãe e suas loucuras. O que está acontecendo
comigo que nem trabalho consigo? A pergunta ecoava em seus pensamentos sem resposta,
estava emaranhada com a mãe e a irmã.
Desenhava
muito bem, interpretava otimamente, adorava fazer ioga. Não conseguia ser como
a mãe e a irmã, aprender as tarefas administrativas, as ciências exatas eram
muito chatas, e complicadas. Seus sonhos eram muito diferentes, queria ser
atriz, queria dançar. Isso incomodava a mãe.
Quando
a gritaria acalmou, passaram se os minutos e a mãe, parecendo mais tranquila, a
chamou para ver um filme. Deixou-se cair nos braços da mãe e acomodou-se ao seu
lado. A mãe sentiu o cheiro da bebida e reiniciou a briga. A mãe lhe bateu no
rosto, puxou-lhe os cabelos, como se fosse um menininha. Já era uma mulher,
moça, jovem, porém mulher. Ali foi a gota d’água, ela pegou a mãe pelo pescoço,
e apertou forte. Deve muita vontade de estrangulá-la. Parou e saiu correndo
para seu quarto. Chorou muito. A mãe levantou-se e chamou os vizinhos, que
chamaram a polícia. A irmã contou que ela vinha se drogando, mentira. Bebida
sim, mas droga não. Elas não a viam como era. Sempre a viam como um monstro,
não a respeitavam na sua singularidade. Ela odiava a irmã. E agora odiava a mãe
também.
Quando nasceu precisou ficar uns dias a mais
que mãe no hospital, teve icterícia. Quando veio para casa a irmã que era mais
velha que ela dois anos, não a aceitou muito bem. O pai era com quem melhor se
entendia. Sempre foi uma menina magra, de poucas palavras, mas muito sensível.
Adorava dançar, e a avó pagou para que fizesse bale. Na escola, as disciplinas
sempre gostava mais de português, de literatura e de filosofia. Adorava ler,
escrever, cantar e dançar, o que a mãe sempre a criticava. Onde tudo isso iria
levá-la, sua mãe uma mulher pragmática. A irmã foi estudar economia.
Quando
amanheceu uma companheira de cela pediu para a guarda tirá-la da cela, e foi
conduzida ao serviço de psicologia da prisão.
Não
conseguia falar, só chorar e tremer, num misto de frio e medo. Não queria
retornar para a cela, tinha medo que as outras a matassem, que lhe fizessem
mal. Queria ficar quieta e só, e poder pensar sobre o que tinha se passado.
Sentia-se muito mal, parecia que ia morrer, tamanha era a dor de cabeça. Falava
que se tivesse que ficar ali, era melhor que morresse. Que ia matar-se, que a
vida não tinha mais sentido. Estava com raiva da mãe por tê-la colocado naquele
lugar. Não precisa ter feito queixa. Tinha que estudar para o vestibular, não
podia perder as aulas, o cursinho já estava pago. A tia tinha feito isso por ela, e agora como
seria. Teria que ficar ali presa quanto tempo?
Precisou ser levada ao atendimento de emergência para ser medicada.
Como
sua liberdade provisória demorou para vir, foi sendo atendida pela psicóloga, e
foi refletindo sobre sua vida com a mãe. Pensou que quando saísse da prisão não
ia mais morar em casa, ia trabalhar e parar de estudar.
Sua
irmã imaginava que ela queria roubar a mãe, que seus amigos eram usuários de
drogas, que ela poderia tentar fazer algo contra sua mãe. Ela era vista com uma
estranha para a família.
Tinha
já feito tentativas de alçar voo, sem sucesso. Saiu de casa aos 16 anos e foi
morar na praia e trabalhar. A saudade de casa, da mãe e da irmã não a deixaram
ficar. A segunda vez, não fazia muito,
estava em casa de volta há mais ou menos seis meses. Porque não conseguia ficar
longe dessas pessoas que não a amavam. Os momentos que a mãe e a irmã eram
carinhosas eram mínimos, a maior parte do tempo ocorriam os maus tratos, o que
se passava com ela. Pensou que devia ser o medo do mundo, dos estranhos. Agora
isso ia ser diferente.
Começou
a pintar e a ler, isso a ajudava passar as horas naquele lugar. Aproveitou para
ler, ler tudo que lhe caia nas mãos, chegou a trabalhar uns dias na biblioteca
da casa prisional. Como não chegava sua liberdade, raspou seus cabelos, fez uma
promessa para sair daqui. Era devota de Santa Teresinha. Antes de receber a
graça, já pagou a promessa.
Quando
sua liberdade saísse, ela já tinha uma proposta para si mesma de nova vida.
Morar na cidade do pai, e trabalhar. O vestibular, o estudo, ficaria para
segundo plano. A mãe, essa, ela agora não mais queria ver. Estava morta para
ela.