quarta-feira, 22 de março de 2017

O andarilho do bairro
                                                   Magaly Andriotti Fernandes
Ao sair de casa , com muita frequência, vejo um homem dos seus quase quarenta anos, se é que dá para precisar sua idade, maltrapilho, caminhando, com sacolas nas mãos. Ele está sempre sujo, muito sujo. Cabelos curtos e castanhos, isso também é uma incógnita, pois seu cabelo tem sempre o mesmo tamanho. Seus traços faciais lembram um índio. Ele caminha, caminha. Não o vi nunca parado ou sentado.
Ele tem um olhar desfocado, apagado, e vai sempre em frente. Não o vejo em outros locais da cidade, só aqui no bairro.
Fico imaginando o que o levou a sair por ai, caminhando assim, a princípio sem rumo. Nós que o vemos pensamos isso, mas quem sabe ele tenha uma rota imaginaria que tem que cumprir, um percurso seu, só seu que tenha sentido e que o acalente.
O que ele leva nas sacolas? Comida? Roupas? Não é possível ter pistas. Elas estão dias mais cheias, outros dias mais vazias. Que vida é essa? Como viver assim ao relento. Os dias que chove muito fico imaginando onde será que ele abrigado se é que está? Um homem magro, muito magro, mas uma magreza que se mantem, assim como seus cabelos. Algumas coisas nele não andam, não mudam.
Quando eu era menina, e morava num bairro vizinho, tinha um homem que caminhava pelas ruas, mas esse tinha o cabelo comprido, usava um terno de linho branco. Penso que tinha casa, e caminhava durante o dia, pois estava sempre limpo. Um dia quando vinha do mercado com o leite, no tarrinho, assim que comprava-se leite. Ele me parou, pegou o tarro e tomou boa parte do conteúdo. E eu ali totalmente paralisada. Quando ele me devolveu o tarro sai correndo, cai, me machuquei, e cheguei em casa só choro.
Algumas pessoas, aprendi no curso de psicologia, não conseguem viver em espaço fechado como uma casa, um apartamento. Precisam desse espaço amplo, da rua, para viverem e se significarem. Para aqueles que vivem nas suas casas, nos seus lares, essa vida não faz sentido. Mas, tem, eles tem sentido, um sentido único e singular. 
Hoje voltado para casa o encontrei, e fiquei pensando o que fazer para ajudá-lo. Sim eu penso que ele precisa de ajuda. Seu estado de sujeira, de atiramento, se cheiro que sente-se ao longe. Pará-lo e oferecer para pagar um almoço? Ajuda-lo a chegar a um serviço onde possa ser acolhido?
O problema desses serviços que eles assim como eu quero, desejo coisas por ele e para ele. Não vão aceitar que ele fique indo e vindo, que ele possa vir ali e tomar um banho, coma algo. Que é a família dessa pessoa? Em que momento ele sai a peregrinar, a trilhar as ruas do bairro infinitamente?
Não sei se ele fala, nunca o ouvi, nem vi, falando com outra pessoa. Anda calado, não tenta aproximar-se, não pede nada, só caminha.

Porto Alegre, 22 março 2017.

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