sábado, 30 de abril de 2016


O leite e o homem que perambulava


                               Na década de sessenta, em Porto Alegre, o leite era vendido em litros de vidro, e o usuário levava até o mercado um tarro e o leite era ali repassado. Mey saiu cedinho de casa com seus dois tarros, o da mãe e o das bonecas. Ela uma menina franzina, de nove anos, estatura abaixo de sua faixa etária porem autônoma e determinada. Gostava desse movimento matinal antes da escola.
                                Desceu a lomba, comprou o leite e subiu. Quando bem no meio, um homem branco, de terno de linho branco, cabelos longos a parou. Ela não lembra se ele a segurou pelo braço, se simplesmente pegou o tarro de leite de sua mão, se falou com ela. O medo era tanto que ficou ali estática, paralizada como na brincadeira que gostava de fazer com os amigos. Os olhos eram duas bolitas, arregalados, pelas pernas um liquido quente escorreu de pavor. A vontade era sair correndo, mas como? Como sair correndo, o medo era tanto. Ele bem tranquilo tomou o que podia do leite e devolveu o tarro. Ela quando o viu se afastar, saiu em disparada. Suas pernas curtas e atrapalhadas, a levaram ao chão. Novo choro, o sangue agora escorria dos joelhos machucados.
                                Chegou em casa aos prantos, sua mãe já veio direto para suas orelhas, brigando, e perguntando o que ela tinha aprontado. Sim pois a mãe sempre a via como uma transgressora, como alguém que faz tudo errado. Para seu bem a avó vem lá do fundo da casa, ralhando com a mãe. Pega-a no colo, enxuga as lágrimas, limpa os machucados, abraça bem forte. Agora sim no céu, segura pode então falar, e contar o pouco que lembra. Quando se dá conta que perdeu o tarro das bonecas, novo choro. A mãe não se dá por vencida, e briga e a manda parar de chorar, pois que valor tem um tarro de bonecas, o mal maior para ela era o leite do café que se foi.
                                Com a avó, agora pela mão, retornam o caminho em busca do tarro. E avó, uma mulher sabia, aproveitam e buscam novamente o leite. O homem, um caminhante de rua, já era conhecido no bairro, uma pessoa em sofrimento psíquico, que perambulava. A avó foi tentando explicar, diminuir-lhe o medo e mostrando que ele tinha fome e que não a machucou.
                               Hoje penso que graças a minha ela  fui estudar psicologia.
Porto Alegre, 30 abril 2016

MAGALY ANDRIOTTI FERNANDES.

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